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sexta-feira, 4 de março de 2011

O Discurso e o Sujeito

O Discurso e o Sujeito
Pedro Penido

Deitou para dormir e acordou pensando como encaixaria a palavra "jocoso" em seu discurso na empresa. Sabia do significado dessa palavra e queria calcular muito bem onde a alocaria, temendo que uma má escolha transformasse a palavra no objeto da conversa, sendo que preferia que outras palavras, "mais nobres", definissem a perspectiva, o horizonte, de sua mensagem.

E calculou várias vezes, em vários pontos, sob vários prismas, onde caberia a palavra que não deixava seus pensamentos. Banhou-se, fez a barba e vestiu-se pensando nisso. Fez o café e, antes de sair, beijou os filhos na testa (durante esta semana estavam de férias em sua casa, enquanto a mãe e o namorado viajavam para o litoral).

Saiu de casa e caminhou alguns metros até a rua, onde um carro o apanhou e levou-o para o trabalho. Trocou alguma conversa trivial com o motorista e releu suas palavras, ainda pensando onde caberia a maldita palavra "jocoso". Até o motorista já se encontrava imerso nesse dilema.

Depois de algum tempo num trânsito alucinante, chegou ao trabalho e, um a um, cumprimentou os colegas de trabalho que entravam e saíam do prédio imponente, de miríades janelas e infindos reflexos do sol.

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Há um mês havia sido informado que faria um discurso para todos os diretores. E mesmo vendo-os quase sempre, ficava nervoso em falar para tanta gente importante.
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Chegou a hora e não conteve certa hesitação em sua apresentação. Falou da necessidade de pensar o mundo a partir de 'éticas empresariais' mais cristalinas, mais alinhadas às necessidades das pessoas e capazes de fomentar o desenvolvimento de um espírito comunitário.

Discutiu, um a um, os problemas de cada andar, vez apontando opções para corrigi-los, vez apontando opções para preveni-los. Todos escutavam atentos, mesmo sendo diretores importantes, sabiam que a imagem da empresa podia estar em jogo. E uma empresa não atenta a este tipo de questão poderia naufragar no próprio vômito.

E foi num estalo que concluiu seu discurso com dizeres que alertaram para a conduta de cada um, mesmo que disfarçada na impessoalidade da universalização dos sujeitos. Disse: "e, pessoal, por favor, não cuspam ou joguem chicletes e coisas assim pela janela, quase tudo isso cai nos vidros e, para tirar dali, tenho que usar produtos que podem estragar o vidro ou a mim!", e riu, com sobriedade.

Todos aplaudiram-no. Zé Mário, como o chamavam, saiu dali com ares de dever cumprido. Foi ovacionado pelos colegas de janela (um apelido inusitado para a turma, mas que pegou) tanto pela propriedade do assunto quanto pela audácia em chamar os diretores, mesmo que bem sutilmente, de porcos.

O resto do dia correu rápido. Janelas e mais janelas eram atacadas pelo equipamento de limpeza, que adquiria fúria e agilidade impressionantes em suas mãos.

Ao final do dia, saiu da empresa, trocou-se e caminhou para a rua, onde o mesmo motorista veio apanhá-lo. Seu irmão Toninho Taxista queria saber de tudo. Queria saber como fora o discurso, como os patrões reagiram, como ele se sentiu e tudo mais.

E a conversa durou o tempo dos seguidos congestionamentos até que chegou em casa. Encontrou os filhos no quarto jogando videogame e a atual mulher terminando o mexidão que ele adorava.

Anoiteceu na cidade. Anoiteceu na comunidade. O dia seguinte - esperava - deveria ser menos atormentado por chicletes e cuspes. E, sim, seria, provavelmente, um dia mais animado, alegre... "jocoso".

Um comentário:

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