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quarta-feira, 25 de maio de 2011

O Passageiro

O Passageiro
Pedro Penido

Estavam todos no ponto de ônibus. E aguardavam, ansiosos, a chegada do próximo embarque. Mal sabiam que aquele seria o último de suas vidas. Vidas pueris, como logo constatariam. E eu, mais uma vez, feito resto do tempo, tive a singular oportunidade de vivenciar as palavras que, minutos depois, mudariam horizontes inteiros e reclamariam o direito de traçar rumos.

Logo chegou nossa carona. O balaio, como dizem, já vinha lotado e ainda parou para receber mais passageiros. E, feito animais, todos se espremiam no pequeno corredor dividido quase ao meio por uma roleta e um transparente "assistente de bordo". Um a um passamos todos. Recebidos pelo mesmo olhar seco de um homem que vê tanta gente ao longo do dia que cada um se torna todos e todos se tornam apenas um mais.

Ali, em nossos assentos, aguardamos, cada qual à sua maneira, os destinos que se tornavam mais aconchegantes à medida que a viagem corria. Até que o ônibus parou em um ponto que nunca havia parado antes. Alguns dormiam e nem notaram a parada incomum. Outros, atentos, se entreolharam com confessas interrogações cravadas em olhares que misturavam arrogância e ingenuidade. Mas, mesmo entre limites tão concretos, jamais esperariam compreender o que aconteceu logo em seguida.

Ouviu-se o estalar do metal e logo à frente, um homem em andrajos e restos de si, caminhou, trôpego, para dentro do veículo. Suas mãos marcadas pelo tempo e pelos perigos da cidade ditavam o passo, enquanto os pés se arrastavam, um após o outro, pelo corredor. Os olhos eram feitos de sombras e o rosto parecia conter todas as rugas do universo. Um ou outro tremor dava-lhe ares de velhice, apesar da postura, vez ou outra, apresentar um incompatível lógica entre idade e desempenho.

À medida que passava, trazia densa escuridão em seu encalço. As pessoas pelas quais passava envelheciam, apodreciam, viravam pó. Algumas percebiam e se desesperavam. Mas suas sombras só ensaiavam gritos que nunca vinham, antes de sucumbirem ao alastrar do manto que seguia o passageiro.

E assim que atravessou a roleta, todos os demais passageiros afastaram-se para o fundo do ônibus. Aqueles que não se afastaram a tempo, inclusive o homem do rosto transparente sentado ao lado da roleta, tornaram-se, rapidamente, pó. O homem não dizia nada, nem gesticulava, nem parecia ligar para o horror que causava.

Seus lábios, cuidadosamente costurados com fios escuros e avermelhados, pouco movimento faziam. Nenhum som vinha de sua feição aparentemente cansada. E assim ele continuou seguindo, tornando cada passageiro pó. Até que parou. Olhou para uma jovem assustada, com lágrimas nos olhos, e apontou em sua direção. Na janela ao lado traços se fizeram no rastro da poeira:

Quem é você? - era a pergunta.

A jovem se desesperou... gaguejou... gritou... virou pó.

Assim o passageiro sombrio, agora cada vez mais encoberto de sombras e cinzas, continuou caminhando até a segunda porta de saída. Pelo caminho repetiu o ato de escrever nas janelas e transformar seus entrevistados em cinzas e restos. Antes de descer, olhou para os últimos sobreviventes e as amarras de sua boca se desprenderam e pode-se ver seus dentes podres e dourados. Ele gargalhou e desceu resmungando coisas incompreensíveis. E na parede ao fundo do ônibus, atrás dos sobreviventes, um rabisco feito de carvão havia sido deixado:

Eu assusto vocês? Nos veremos logo.

E assim que desceu tudo voltou ao normal. Todos estavam em seus devidos lugares. Nada havia sido alterado. Não havia mais cinzas ou pó, nem rabiscos nas janelas. Tudo completamente e assustadoramente normal.

Exceto pelo fato que o rabisco no final do corredor ainda estava lá. E todos os sete sobrevivente, amontoados nas cadeiras, estavam parados, em choque, esvaziados. Desceram em seus respectivos destinos e nunca mais sonharam ou dormiram em paz.

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